JOSÉ AUGUSTO POESIA
sábado, 22 de outubro de 2011
INDIO
e ele comia chocolate.
Sua roupa era de tergal, voil ou escambau,
não era de folha ou de pena, não era tanga.
Andava de ônibus, bebia coca-cola
e dormia na sarjeta.
O índio que eu vi na rua,
não era bicho do mato,
era senhor do asfalto,
magro, triste, faminto e sem teto,
também era analfabeto.
Sonhava matando onça,
Comendo caça e pescando e
Acordava bêbado e chorando.
A saudade ardia-lhe o peito
e um dia voltou para a sua gente,
mas a sua tribo não mais existia.
Decidiu voltar à cidade
e eu vi quando ele voltou,
fez dela a sua aldeia
e foi parar na cadeia.
Eu vi um índio na rua
e ele não era mais índio.
Sua roupa era de pena...era tanga;
ele era um bicho do mato,
comia caça e matava gente,
era forte, alegre e nutrido...
já não era analfabeto,
mas era um louco varrido.
sexta-feira, 21 de outubro de 2011
TENTATIVA
Eu tentei reconquistar um velho amor.
Um doce e velho amor.
Mas o que consegui foi ressuscitar a dúvida, a desconfiança, o ódio e a culpa pelo erro que cometi quando perdi o doce e velho amor.
E assim, armou-se uma contenda num palco familiar.
Os erros e as ignorâncias mútuas se digladiaram e nós dois perdemos um ao outro outra vez.
Eu tentei ser grande o bastante para me tornar tão pequeno e insignificante, ao ponto de assumir culpa por culpa, erro por erro – os meus e os dela – mas não fui capaz.
Chamado à luta (ela escolheu as armas: os alfinetes) topei.
Feri e fui ferido e mais uma vez nós dois perdemos.
Perdemos mais uma chance de sepultar o passado e de regar a semente do futuro.
Mas aprendemos que não se sepulta o insepultável, como não germina o que ainda não se plantou.
Eu tentei fazer renascer o velho e doce amor e colhi os frutos do velho e amargo ódio.
E os colhi viçosos e maduros e os devorei, como a fruta predileta, numa só mordida. O seu sabor rasgou minhas entranhas, envenenou a minha esperança que sucumbiu no último vômito que dei.
REENCONTRO
O seu beijo e o seu sexo,
melhores que outrora,
fizeram-me, como mágico,
transpor as barreiras do medo,
os entraves da dor
e os óbices do orgulho,
e num mergulho à paixão,
afoguei-me no desejo incontrolável
de amá-la mais uma vez.
Na água morna, quase caliente, da banheira,
vi-a sereia entre espumas
e nos jatos da hidromassagem acariciei o meu santo ego,
como espécime irresistível e em extinção.
Chorei ao lembrar que não fui capaz de lapidar,
com todas as palavras do meu vocabulário,
a escultura que você sempre foi.
Então, sorri...
desbotadamente,
inconsequentemente,
levianamente
e inconscientemente,
ao sentir sua maturidade forjada com fios de orgulho e mágoa
esticados ao limite, entre dentes afiados.
E veio o sexo, complexo,
anexos os corpos, só restou o prazer.
JANELA
Abro a janela do mundo no meio da tarde
e espio lá fora a vida que voa rasante sobre a morte adormecida,
após o último repasto.
Sinto frio e arrepio, fecho a janela e vivo enquanto posso.
Sou infeliz de vida amarga, em busca não da felicidade.
Esta é escassa no mercado.
Mas a paz é possível e hei de encontra-la, mesmo que seja no último instante da vida.
Esta é o que me resta.IRREAL
Eu a fiz com os fragmentos de um sonho
e a tornei tão real como a matéria mais densa do átomo.
Eu interferi no tempo
e acertei os ponteiros entre o querer e o poder.
Fiz-me constituinte de uma república só nossa de nome: amor.
Li suas mãos, desvendei mistérios,
Esculpi-lhe uma estátua, construí um castelo e a convidei pra rainha.
Enganei-me...
Você não era real, não era verdade...
Você era apenas um doce sonho...
Nada mais.DÚVIDA
O caminho nasce na certeza e rasga o destino rumo ao infinito.
Tudo é emoção, deslumbramento, a cada curva;
Um suspiro aliviado no topo do aclive e um friozinho no deslizar sereno do declive.
As paisagens se confundem, as imagens se desfocam e a certeza persiste.
De repente uma placa: “Ponte estreita a frente”.
Toma-se cuidado, lê-se atentamente a sinalização e esta se multiplica em curvas a direita, a esquerda, cancelas, obstáculos, cuidado! Animais na pista, ondulações, acostamento com defeito, restaurante a 500 metros, pare fora da pista, bifurcação a 1 quilômetro: razão a direita, aventura a esquerda.
Problema: combustível na reserva.
Solução encontrada: Tira-se a barraca do porta-malas, ergue-a na beira da estrada e se torna o fundador e primeiro habitante da futura metrópole denominada: DÚVIDA.
Dúvida hoje possui milhões de indecisos, à espera de que alguém instale ali um posto de coragem – combustível essencial de seus veículos – para que possam decidir qual o caminho seguir.